Carta para te encontrar

Querida

Não tenha vergonha da sua necessidade de colo. O mundo simplesmente não tem como compreender tudo o que está em jogo quando você precisa de Encontro. Por vezes ele poderá fazê-la crer que se trata de uma fraqueza mesquinha, de um capricho infantil ou de loucura e desespero.

 Pois eu sei que não é nada disso.

Entendo que tens uma nostalgia de um lugar confortante, de sentir-se agasalhada, bem vinda. Compreendo que você busca um lugar onde possa descansar em confiança e relaxar até adormecer. Vejo seus olhos vigilantes, sempre tentando garantir que seu lugar dentro do outro não desaparecerá. Sei que tentas cuidar de tudo, para que o chão não lhe falte de repente, para que a presença do outro não se esvaia no ar, para que não sintas na pele o descuido, para que suas palavras não caiam no abismo da não-comunicação, para que não sejas recebida com desprezo ou indiferença.  Compreendo também que quando isso acontece você sinta que a vida não tem sentido e que nessas horas você consiga apenas se deitar, recolhida numa concha feita pelo seu próprio corpo e com sorte consiga adormecer, embrulhada num sono que ao mesmo tempo te acolhe e te aliena da dor de sentir-se desamparada, rejeitada e sozinha.

Te escrevo essa carta entretanto, para que através dessas palavras que pronuncio com calma e doçura, saibas que tudo isso que sentes e almejas tem um sentido. Seus primeiros colos foram por demais instáveis e aflitos. Foram colos que pediam colo e, por isso, ao invés de construírem redes para te ninar e assegurar, deixaram buracos profundos na sua alma, que hoje aparecem no seu corpo sedento por toque e calor, na sua busca por olhar sereno e atento, no seu anseio por comunhão.

 Essa é sua história, e ela, junto de outras coisas, lhe constituiu com esses anseios. Você não só pode como deve continuar buscando seus recantos de segurança, encontros ricos em amorosidade e compreensão, possibilidades de entrega, relações de confiança. É isso tudo que a tornará fortalecida, inteira, existente. São essas experiências que lhe possibilitarão exercer a sua vitalidade, gozar a vida, se tornar fecunda, e assim, REALizar-se no mundo.

Não tenha medo de procurar, por medo de não achar.

Olhe ao redor, sei que você sabe reconhecer. Seu corpo reage quando há um anúncio de possibilidade de Encontro. Escute bem, seu coração irá bater diferente. Seus olhos se abrirão ávidos e felizes, um esboço de sorriso se desenhará no seu rosto. E depois, depois do Encontro, sua alma dançará alegre, numa vontade de viver para sempre. E terás milhares de desejos, sua mente inundará de idéias criativas, seu corpo lhe parecerá imortal e imbatível e tudo fará sentido. E será essa experiência que lhe possibilitará ter mais serenidade e tolerância com os infindáveis e inevitáveis desencontros da existência.

Desejo-lhe sorte na sua busca, luz  no seu caminhar e esperança para os momentos de desengano.

Com amor, Tatiana.

Ser mulher

Que ser mulher é diferente de ser homem apesar do esforço em tornarem-nos todos iguais. O que é igual é a nossa humanidade.

Que ser mulher não é melhor nem pior, é só ser mulher.

Que ser mulher é saber-se mulher ao mesmo tempo que se sabe menina. Que ser mulher é querer ser velha logo para ter a sabedoria, a sensatez, a lucidez e aceitação de certas avós.

Que ser mulher é ter a coragem de Clarisse – coragem de olhar – e ver, o que não se quer, o que é feio, o que dói, o que destrói, o que corrói, o nada, tudo enfim. Coragem ainda de confessar, de se revelar.

Que ser mulher é se emocionar com todos os nascimentos, gestações, rompimentos, perdas, conquistas e mortes. É deixar a vida tocar, é tocar a vida. É tremer.

Que ser mulher é recepção, é calor, é abrigo, é maciez, é espera.

É flor, é casa, é canto.

É corpo, é não-verbal.

Que ser mulher é ser.

Fenômeno-fim-de-ano

 

Já faz um tempo que coleciono reflexões sobre o que nos últimos dias apelidei de fenômeno-fim-de-ano.

É verdade que estava com isso procurando nomear uma experiência, a priori, não lá muito boa. Mas acabo de realizar que, como tudo na vida, há dois lados da coisa.

O primeiro, que inclusive ocorre primeiro, é o estado geral e coletivo de correria, impaciência e irritação que parece se instaurar no ar. Decidi chamar de fenômeno porque por mais que um tente escapar dele, um é pego. Talvez em cidades  que dormem seja diferente. Até creio que sim, porque sinto que São Paulo também exerce um impacto por vezes silencioso e invisível em seus moradores. A questão é que quando menos se espera, o fenômeno ocorre, alheio às nossas tentativas de proteção.

Acho que há uma ansiedade generalizada, decorrente de uma antecipação de trabalho, por conta do recesso de natal e ano novo, e um cansaço que vem de um acúmulo de tarefas em decorrência de preparação de festas, compras de presentes e reuniões de confraternização. Todos (a não ser os que vivem o ano todo em suas próprias cavernas) parecem estar esbaforidos e com pouca energia. Não acho que isso tudo seja pouco, porém, venho pensando que talvez não seja o suficiente para nos mobilizar tanto. Cheguei então à seguinte hipótese: acho que paralelamente a todos esses fatores concretos e externos, algo mais vai se passando internamente, inconscientemente, mas não sem nos afetar. Acho que cada um de nós, nesses últimos dias do ano, vai paulatinamente fazendo um balanço de sua própria vida. Talvez algo semelhante com o que nos acontece na véspera de nosso aniversário, o tal do inferno astral. Entretanto não acho que seja só infernal. Acho que é também divino. É infernal (sem todo o peso dessa palavra) parar para olhar para si e para a própria vida. Nem sempre gostamos do que vemos, nem sempre estamos munidos da esperança necessária para respirar fundo e dar o próximo passo, rearranjar as coisas, transformá-las para tentar novamente. Mas poder reconsiderar, ponderar, recomeçar, renovar, sonhar, renascer enfim, é sempre divino. E imprescindível.

Todas as pausas, instituídas pela natureza ou pelo homem, são de um valor inestimável para nós. O que seria da gente se não dormíssemos para amanhecermos para um novo dia, novinho em folha? O que seria de nós se não virássemos a página de cada ano para começarmos a escrever uma nova história em um ano novo? Eis o outro lado do fenômeno! Em meio a toda confusão e exaustão da finalização de uma jornada, celebramos a vida com aqueles que amamos, gostamos ou apenas com-vivemos. Trocamos desejos de saúde, alegria e paz, trocamos presentes que presentificam nossa gratidão, admiração, amor, amizade, ou simplesmente que contam da importância que os outros têm dentro de nós. Resgatamos, meio à força, há de se dizer, o que realmente importa e que nos foge tão facilmente na corrida da vida e assim ganhamos força para dar continuidade.

Em acordo com as minhas reflexões deste fim de ano, deixo aqui o meu desejo mais sincero: que sejamos cada vez mais o melhor de nós mesmos. Porque o resto, em sua maior parte, é apenas conseqüência disso!

Feliz festas!

* A bela foto de nome "Ar, luz, cor!" é de Lucila Mantovani.

Por sorte

Ela nasceu tão graciosa e bem feita que seus pais a confundiram com uma boneca.

Quando pequena, ela era tão quietinha e obediente que eles esqueceram que ela era uma criança.

Depois ela cresceu e virou uma mocinha tão madura e tão bem comportada que nem perceberam que ela era uma adolescente.

Quando tornou-se mulher, parecia saber tanto sobre a vida e as pessoas que eles nem se deram conta de que sofria com suas próprias angústias de adulta.

Por sorte, ela era tão doce quando criança que eles perceberam que ela era uma menina sensível e amável e lhe deram muito valor e atenção.

E quando adolescente, por sorte, ela tinha tão claro o que queria pra sua vida que eles perceberam que ela ia longe e apostaram nisso, lhe incentivando a correr pelo mundo, conhecer a vida, seguir seus sonhos.

Por sorte também, quando mulher, ela era tão bonita e tão descuidada, tão segura e tão assustada, tão meiga e tão agressiva, tão sábia e tão impotente, tão feliz e tão triste, tão esclarecida e tão confusa, que por sorte mesmo, eles perceberam que ela era humana.