Sobre faxinas e lembranças

Numa dessas faxinas que a gente começa meio sem querer (meio, porque ao fim, parece que precisávamos), mas numa dessas faxinas em um armário do meu consultório, na sala de crianças, deparei-me com três gavetas com várias caixas dentro, com vários bilhetes, cartas, cartões e afins de um período da minha vida (de 93 a 98 ou dos dezesseis aos vinte e um) que compreendeu as duas viagens mais longas e muito significativas que já fiz.  Uma para os Estados Unidos, onde vivi por um ano como “Exchange student” e a outra para Europa, onde fiquei por 3 meses, “mochilando”. Na primeira eu tinha 16 e 17 anos e na segunda, tinha 21.

Encontrei cartas de tudo quanto é tipo. Cartas de amigos, pais, irmãos, familiares, namorados, paqueras, alunos e estranhos. É, estranhos. Foi estranho, mas li duas cartas e um bilhete de pessoas que conheci e de que não me lembro absolutamente nada! Um pouco aflitivo pra falar a verdade, porque eram escritos de muito carinho e admiração. Devem ter sido aquele tipo de encontro de um ou dois dias, mas que são muito intensos, pois são realmente um encontro. Nunca saberei, mas talvez eles também não se lembrem mais de mim.

A bem da verdade, gosto muito desses momentos nostalgia. Sempre choro um pouco, em geral lendo os bilhetes da minha avó, dos meus pais e dos meus irmãos. Uma coisa impressionante é que estou quase certa de que minha avó me escreveu um bilhete de aniversário em todos os anos da minha vida. Dessa vez, resolvi começar a juntá-los para depois conferir. Sempre muito dedicada e caprichosa, com sua escrita bela, sábia e profunda, mas o que me arranca lágrimas é mesmo o seu amor. Quando ela ainda estava viva de verdade, chorava de emoção, agora que ela vive dentro de mim apenas, choro mesmo é de saudades.

O que realmente me toca em suas cartas é que tenho certeza absoluta de que cada palavra escrita estava carregada de sabedoria proveniente de sua experiência de vida e que cada conselho seu, era realmente um desejo de me oferecer um saber que seria importante e útil para mim, para a minha vida e felicidade. Em outras palavras, sinto seu amor e sua presença em cada frase.

Outra que me emocionou muito foi a carta de aniversário de 18 anos, que minha mãe me escreveu. Ela contando o que sentia tendo a filha mais velha tornando-se adulta, lembrando de quando eu tinha nascido e dos “milhões de ‘querer saber’ que apareceram: como será que ela vai ser? Como será a personalidade dela? Será que ela vai ser feliz? Claro que vai, se depender de mim, vai! Vai casar? E o marido dela? Que gracinha…ele deve ter 2, 3 ou 4 aninhos… Será que ele está aqui no berçário? Será que ela vai ser bem sucedida? O que será que ela vai ser? Médica? Arquiteta? Nada, uma vagal? Vai ter filhos? Quantos? E assim foi e continua até hoje” Achei tão bonito isso, tão mãe… Que sorte a minha ter uma mãe, mãe.

Sempre rio e choro ao mesmo tempo, ao ler os bilhetes do meu irmão Lú:

Não tem data, mas deve ser do período em que estava nos Estados Unidos. Acho que esse bilhetinho foi junto numa das mil cartas que minha mãe me escrevia semanalmente…

Esse outro, é demais. Encontrei na minha cama no dia que cheguei de viagem:

Continua fofo e figura.

Também ri bastante ao ler as cartas e bilhetes da minha primeira amiga da vida, Fer (que por sinal permanece), lembrando de nossas brincadeiras de infância, códigos secretos, amores platônicos, baladas e viagens da juventude. Seu jeitinho único de escrever, sua letra, que de tão familiar parece a de uma irmã, sua maneira tão peculiar de ser, séria-engraçada, que eu tão bem conheço! Dessa vez encontrei todas as cartas que ela me escreveu durante esse ano (93/94), contando do seu primeiro ano na faculdade e suas peripécias com os caras!

Das amizades, mais duas chamaram a atenção. Um, um amigo que fiz quando morei na Europa. Um australiano cujo apelido nós cunhamos de “Filly”, por conta de só comermos pão com queijo Filadelphia, já que passamos algumas semanas praticamente sem dinheiro. Ele me apelidou de Miss Muffett, já não lembro por que. Trabalhamos juntos no mesmo albergue em Roma e depois viajamos juntos por duas semanas (Roma, Siena, Veneza, Brig (Suíça), Londres) que mais pareceram um dois meses, tamanha riqueza do tempo juntos. Encontrei a carta que ele me escreveu e me deu no dia que em que ele iria voltar pra Austrália e que não sabíamos se iríamos nos ver alguma outra vez na vida. (Na verdade sabíamos que as chances seriam remotas.) Ele escreveu uma carta de 4 páginas, linda, engraçada, extremamente bem escrita e rica de pensamentos e sentimentos profundos que me deixaram surpresa e feliz de perceber como já éramos maduros para algumas coisas, como já sabíamos cuidar de nós mesmos e dos outros e como sabíamos aproveitar a vida e os encontros especiais que ela oferece. Fica aqui alguns trechos em homenagem a esse querido amigo do outro lado do mundo, já que tudo que ele descreve é recíproco.

“It has been such a blast to have spent the past two weeks travelling with you, so much so that my experiences over the time since we made a famous exodus from Rome have been and always will be ones I will hold forever close to my heart.”

 “Even though at times recently we have both been desperately deep in shit up to our necks, somehow between us we have managed to pull ourselves through, miracously surviving the greatest pending threat from the evil forces of the dollar gods who hold such a tender thread over our heads at times.”

 “Thank you for being the voice of reason, calm and strength when I have sat bewildered, angrily staring into space for answers to problems which seemed like they could overwhelm my little world – and thank you so much for  pulling me back to reality during times of complete shite and showing me the way towards acceptance”

 “In a short period of time, and over lots and lots (molto, molto) of red wine plus a few Julius Cesar beers, we formed a bond which I hope we can keep forever more”.

Infelizmente nos falamos apenas mais algumas vezes logo depois que voltei da viagem, mas a lembrança da ligação que formamos se manterá forever more.

Retomando, a outra carta que encontrei de um amigo querido, o Mau, trouxe alegria e risos, mas também reativou uma dor que parece não passar nunca. De todos os amigos homens que tive, sem sombra de dúvida esse foi o mais especial. Nos conhecemos na escola, primeiro colegial, e na época da minha viagem pra Europa, estávamos no auge da nossa amizade, amizade que eu jamais poderia imaginar que acabaria um dia. Nas primeiras semanas que estava lá, na Itália, passamos alguns dias juntos (ele estava de passagem, indo morar em Londres) e foram dias inesquecíveis. Essa carta que achei é de um tempo depois, quando eu já estava de volta e ele na Inglaterra. O que mais gostei e ao mesmo tempo, o que mais me doeu, foi ter relembrado do seu jeito maluco/sábio de ser! Nada com ele era convencional. Sua carta tinha Parte I, Parte II e Parte III, numa letra quase impossível de ler, a escrita sendo praticamente um jorro de seus pensamentos e sentimentos, absolutamente sui-generis.

“Parte I: Tati, minha amiga favorita mesmo que não fosse a única! Sabe que sua carta número 1 me fez rir e chorar! Puta que viagem! E que saudades tb! Soou-me como uma “comédia da vida privada”. To falando sério! – Grande parênteses – (e olha como isso é importante; lembra do episódio dos 4 amigos que se encontram a cada 4 anos para assistirem a Copa do mundo juntos? Senão te conto em breve, muito loco e com tempo) E agora falando sério, veia Tati, estamos ficando veios!! E que delícia, não? Quantas estórias contadas e vividas no passado, resolvidas e revividas no presente. E o futuro? Bem, 3 cartas em diferentes tempos e situações, coisas acontecendo, boas e ruins – it doesn’t matter! É a vida! Eu estava com raiva de você sabia? Acho que porque vc foi embora sem falar comigo ou porque não me escrevia. “E de volta para o futuro” Parte II: “Previsões para o futuro”! Não falo de psicologia pois isso já havia sido prescrito por Buda a mais de 1000 anos atrás; falo que os instantes seguintes serão os que tiverem que vir, ou melhor – psiu, hein, você!! Ouve isso! Vim aqui pra viver!! Entendeu? Viver!! I really don’t care about it, girl! Anyway, coisas magníficas vindas do além, só pra variar! (…) Passando da aula do verbo to be pra falar de mim; loucura é a verdade em que aqui vivo cada dia, um depois do outro. Fui atrás dela, até me sentir pleno, inteiro e louco! Vivo em paz com os meus sentimentos e em harmonia com os meus sonhos. (…) Parte III: 26 de fevereiro terminam as aulas e então irei viajar pela Europa. Talvez Paris, Barcelona, Bruxelas ou Amsterdã again. E depois NY. Talvez tentar o sucesso ou a máfia. E pra vc que talvez escreva uma tal tese sobre aniversários – devo chegar no Brasil no dia 8 de abril, ta!!? E só para que conste nos altos – Álbum 7, música 8. Letra e música, tá?”

Fui atrás da música. Pequeno parêntese: (Mau e eu éramos viciados, aficionados por Legião Urbana. Por sinal foi ele quem me deu toda a coleção no meu aniversário do ano anterior. Passávamos o dia mandando mensagens pelo BIP com trechos de letras, um para o outro). “Soul Parsifal”, do álbum Tempestade. A música é alegre, a letra profunda. Ao ouvi-la posso vê-lo em cada estrofe, mas não ouso falar do que ele sentia, como a própria música adverte. Digo apenas do que sinto: uma profunda pena por não tê-lo mais presente em minha vida, no meu dia-a-dia. Até hoje não sei ao certo porque rompemos. Tudo que sei é que fiz algo que o desagradou e meu pedido de desculpas parece não ter sido o suficiente. Mas ainda somos jovens e a vida dá muitas voltas. Se tem uma coisa que tenho de sobra, é esperança.

Enfim, isso aqui já ta ficando longo demais. Mas precisava fazer essa pausa, registrar esses momentos, essa parte da minha história. Todas essas lembranças me ajudaram a retomar facetas minhas esquecidas. Às vezes o presente fica presente demais. Agora vejo que não era à toa que ultimamente vinha lembrando tanto da minha viagem pra Europa… Lá encontrei boa parte de mim mesma, nos dois sentidos. Foi bom relembrar, pra não esquecer.

Apesar de ter sentido saudades das cartas escritas à mão, da letra de cada um, que revela tanto do nosso jeito de ser, do amarelo do papel, que nos dá a verdadeira dimensão da passagem do tempo, mesmo assim sou grata ao mundo digital, pois sem ele não teria com quem compartilhar tudo isso, provavelmente teria escrito esse texto num dos meus cadernos e só eu mesma iria ler, quem sabe daqui uns 10 anos…